sexta-feira, 2 de maio de 2014

ERRO MÉDICO: O DIREITO E A CARACTERIZAÇÃO DO ATO ILÍCITO

  

   Elaborado em 19/04/2014.

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Abordagem histórica - 3. Constituição e Leis Civis - 4. Caso concreto - 5. Conclusão.

1 - INTRODUÇÃO

    A falha de um médico no exercício de sua profissão é difícil de ser identificada sem que haja um pronunciamento jurisdicional. Antes disso, o que se tem é a suposição de erro, invariavelmente motivada pelo dano físico e moral que atinge o paciente, o que também se compreende.  

    A controvérsia que se instala a partir da dor, que pode alcançar o corpo ou o sentimento, encontra no âmbito jurídico a elucidação da culpa ou não. Embora, geralmente, prima facie, surja a falta de êxito, nas questões relativas à vida ou à sua qualidade, como atentado à dignidade humana, as dúvidas se dirimem com a interpretação e aplicação da legislação.


2 - ABORDAGEM HISTÓRICA

    Na antiguidade a tentativa de cura, por ausência de conteúdos científicos, se dava pela confiança em poderes divinos. Sacerdotes de religiões que integravam o sistema politeísta, notadamente nas regiões ocupadas pelas Civilizações Fluviais, exerciam o mister.

    Evidentemente, que o eventual fracasso, originário apenas da prática, geraria nos familiares do enfermo o sentimento de represália.

    Naturalmente, como revela a história, o ramo de conhecimento da cura, começou a gradativamente ganhar contornos mais nítidos de ciência, se distanciando da "sorte ou azar", restando os seus agentes, passíveis a sanções e penas pecuniárias. No dizer de Miguel kfouri Neto [1]:

   [...] " O primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o Código de Hamurabi (1790-1770 a.C.), que também contém interessantes normas a respeito da profissão médica em geral. Basta dizer que alguns artigos dessa lei (215 e ss.) estabeleciam, para as operações difíceis, uma compensação pela empreitada, que cabia ao médico. Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal." [...]

   [...] "A responsabilidade civil recebeu do Direito Romano os princípios genéricos que mais tarde seriam cristalizados nas legislações modernas. Antes tinha lugar a vingança privada, forma primitiva, selvagem talvez, mas até certo ponto derivada da natureza humana e compreensível, de reação contra o mal sofrido."

         "Posteriormente, a vingança privada, como forma de repressão do dano, passou para o domínio jurídico: o poder público passa a intervir no sentido de permiti-la ou excluí-la, quando injustificável." [...]

   [...]  "Passa-se, empós, à compensação tarifada, prevista na Lei das XII Tábuas, que fixava, para cada caso concreto, o valor da pena a ser pago pelo ofensor."

           "Sobrevém, então, a Lei Aquília (ano 468) e tem início a generalização da responsabilidade civil." [...]

    [...] "Ainda na Grécia, com fundamento nas regras adotadas no Egito, chegou-se a admitir a culpa médica quando preenchidas duas condições: a) morte do paciente; b) desobediência à prescrições geralmente reconhecidas como fundamento indiscutível da atividade sanitária." [...]

       A despeito da afirmação da Academia de Medicina de Paris, e com o passar dos séculos, é límpida a observação de que os Tribunais Franceses atuaram com imparcialidade, na questão do erro médico como narra, ainda na nesta matéria, Miguel Kfouri Neto:


[...] "Já no começo do século XIX, quase desapareceu a responsabilidade jurídica, com a decisão da Academia de Medicina de Paris, em 1829, que proclamou a exclusiva responsabilidade moral dos profissionais da arte de curar." [...]


[...]   "Um doente, em Toulon, operou um fibroma no braço esquerdo. A intervenção foi normal. Surgiu, entretanto, uma paralisia no braço direito. Os peritos concluíram que o acidente proveio de um fato raro (compressão devido ao mau posicionamento durante a operação). Alegou-se que o cirurgião, preocupado unicamente com o ato cirúrgico em si, não foi negligente, nem imprudente, mas cometeu uma simples desatenção absolutamente escusável. O Tribunal entendeu, contudo, contrariando os peritos, que o cirurgião deveria ter levado em conta o acidente raro, mas não imprevisível."  [...]


[...]    "O primeiro julgado, em França, que inaugura a jurisprudência sobre a perda de uma chance, é da 1ª Câmara Civil da Corte de Cassação, reapreciando caso julgado pela Corte de Apelação de Paris, de 17.07.1964. O fato ocorreu em 1957. Houve um erro de diagnóstico, que redundou em tratamento inadequado. Entendeu-se em 1ª instância que, entre o erro do médico e as graves consequências (invalidez) do menor, não se podia estabelecer de modo preciso um nexo de causalidade. A Corte de Cassação assentou que: “Presunções suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à responsabilização”. Tal entendimento foi acatado, a partir da avaliação de o médico haver perdido uma chance de agir de modo diverso – e condenou-o a uma indenização de 65.000 francos." [...]







3 - CONSTITUIÇÃO E LEIS CIVIS

    No Brasil, as Constituições outorgadas e promulgadas no século XX ampararam a obrigação de indenizar, e nelas se inclui a Constituição Federal de 1988, notadamente em seu artigo 5°, inciso X, ao estabelecer que " todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."

    Mencionada normatização está prevista no Artigo 927 do Código Civil, sendo dispositivo correspondente o Artigo 159 da Lei 3.071, de 1°.01.1916.

     O teor do Parágrafo Único traz a exigência de indenizar a pretexto da responsabilidade conferida a uma pessoa física ou jurídica, sem averiguação de culpa:
       "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

   Todavia, primeiramente, submetem-se à análise os artigos 186 e 187 do Diploma Legal, para a apuração da lesão ao direito individual, para que marche para coisa julgada. Respectivamente estão assim expressadas as partes da matéria, que se relacionam com o dispositivo:
       "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
 "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
       Não se pode olvidar do Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14, de onde é possível extrair o entendimento de que a responsabilidade do profissional é subjetiva e não objetiva. Tendo que haver nexo causal entre a conduta do agente e o dano ocorrido. 

4 - CASO CONCRETO 
    Nesta esteira faz-se um exercício de raciocínio, em um caso concreto, da pretensão de indenização, por erro médico, sucintamente relatada abaixo, sendo certo que o acesso foi permitido apenas para estudo acadêmico, sob o compromisso de respeitar o artigo 5°, inciso X da Constituição Federal e cuja a fonte encontra-se sob a égide do artigo 7º, inciso II, da lei 8.906/94:

    Que a Autora teria se submetido a tratamento de quimioterapia em um determinado hospital, sendo cuidada pelo médico Réu, o qual a teria informado sobre a necessidade de realizar cirurgia para extração de câncer na mama direita.

      Alega a Autora que o médico Réu teria realizado a cirurgia e, sem sua autorização, colocado uma prótese em seu seio direito e outra no seio esquerdo. Afirma que após a operação sentia muitas dores e teria sofrido complicações com a prótese colocada no seio que estava com câncer, a qual teria se deslocado para a axila direita.

      Consta ainda da exordial, que o Réu teria usado maus procedimentos para a retirada da prótese, tais como anestesia local, equipamentos não esterilizados corretamente e retirada de quatro seringas com pus de sua mama direita sem anestesia, o que lhe causou insuportáveis dores. Aduz ter sido mutilada sem necessidade, por isso ficou com um quadro depressivo intenso.

A Autora pleiteia a condenação solidária dos Réus ao pagamento de indenização a título de danos morais no valor equivalente a 200 (duzentos) salários mínimos, que perfazem a importância de R$ 144.800,00 - cento e quarenta e quatro mil e oitocentos reais - pagamento de pensão mensal de cinco salários mínimos para tratamento oncológico e psicológico; e custeio de uma cirurgia plástica para sanar as supostas mutilações.

    Nesse episódio, o princípio do contraditório e da ampla defesa, assegurado pela Constituição Federal, conforme artigo 5º, inciso LV da Magna Carta, propicia-se a articulação da contestação, condicionadas à verdade das alegações: 1) que a autora tenha sido informada do diagnóstico de câncer de mama; 2) que a requerente tenha sido informada claramente sobre seu quadro clínico; 3) que o tratamento tenha seguido o protocolo pré-estabelecido; 4) que foi oferecida a reconstrução mamária à paciente como parte do tratamento; 5) que tenha havido discussão exaustiva dos riscos e benefícios do tratamento cirúrgico; 6) que tenha prova incontestável do consentimento para os procedimentos que se fazem necessários ao tratamento médico.

    Se por um lado é assegurado à pessoa o direito de ingressar em juízo, para reparação civil do dano sofrido, com supedâneo na legislação aludida neste estudo, também são a doutrina e a jurisprudência fontes do Direito importantes para a identificação de um ato ilícito.

    Sabe-se que a obrigação médica é de meio, e não de resultado. GONÇALVES  [2] diz que:
“O objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas a prestação de cuidados conscienciosos, atentos, e, salvo circunstâncias excepcionais, de acordo com as aquisições da ciência. Comprometem-se a tratar o cliente com zelo, utilizando-se dos recursos adequados, não se obrigando, contudo, a curar o doente”.


    Nesse sentido, em caso semelhante já se manifestou o TJSP:

“Indenização por danos materiais e morais - Improcedência - Adequação – Preliminar - Nulidade - Inocorrência - Rejeição - Câncer de mama - Mastectomia bilateral total - Plástica para reconstrução mamaria - Cirurgia reparadora e funcional - Obrigação de meio - Caracterização - Erro médico - Inocorrência – Recurso improvido. [...] A cirurgia não era meramente estética, mas reparadora e funcional, constituindo, portanto, obrigação de meio, e não de resultado. O resultado funcional foi alcançado e o resultado estético não era evitável - havia retrações que dificultavam a circulação sangüínea no local - notadamente em face das dificuldades técnicas decorrentes da reconstrução pós mastectomia Radical”. [03]

    Além disso, temos que a responsabilidade civil dos profissionais liberais será aferida mediante a verificação de culpa, de acordo com o artigo 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:

"O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] § 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."

    Há de se chegar desta forma às modalidades de culpa, como ensina o Ilustre Professor KFOURI NETO [04], ao defini-las da seguinte maneira:


“A negligência médica caracteriza-se pela inação, indolência, inércia, passividade. É um ato omissivo”. [...]

Na imprudência, há culpa comissiva. Age com imprudência o profissional que tem atitudes não justificadas, açodadas, precipitadas, sem usar de cautela”. [...]

Imperícia é a falta de observação das normas, a deficiência de conhecimentos técnicos da profissão, o despreparo prático. Também caracteriza a imperícia a incapacidade para exercer determinado ofício, por falta de habilidade ou ausência dos conhecimentos necessário, rudimentares exigidos numa profissão”.

    Ainda focalizando o polo passivo da demanda, que ilustra o assunto em tela, ou seja, indenização em decorrência de erro médico, o hospital responderá objetivamente por supostas falhas na prestação dos serviços, que por ventura vier a garantir, e se em face dele, obviamente, a ação também for ajuizada.
     Se o serviço prestado for defeituoso, inevitável será a indenização.       Entretanto, não é responsável objetivamente pelos serviços dos médicos que atuam na condição de prepostos e cumprem obrigação de meio de não de resultado.

       Esse é o entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

“A responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital – seja de emprego ou de mera preposição –, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar. Na hipótese de prestação de serviços médicos, o ajuste contratual – vínculo estabelecido entre médico e paciente – refere-se ao emprego
da melhor técnica e diligência entre as possibilidades de que dispõe o profissional, no seu meio de atuação, para auxiliar o paciente. Portanto, não pode o médico assumir compromisso com um resultado específico, fato que leva ao entendimento de que, se ocorrer dano ao paciente, deve-se averiguar se houve culpa do profissional – teoria da responsabilidade subjetiva. No entanto, se, na ocorrência de dano impõe-se ao hospital que responda objetivamente pelos erros cometidos pelo médico, estar-se-á aceitando que o contrato firmado seja de resultado, pois se o médico não garante o resultado, o hospital garantirá. Isso leva ao seguinte absurdo: na hipótese de intervenção cirúrgica, ou o paciente sai curado ou será indenizado – daí um contrato de resultado firmado às avessas da legislação. O cadastro que os hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas instalações para a realização de cirurgias não é suficiente para caracterizar relação de subordinação entre médico e hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de organização empresarial”.[5]

      No mesmo sentido:

A responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação técnico-profissional dos médicos que neles atuam ou a eles sejam ligados por convênio, é subjetiva, ou seja, dependente da comprovação de culpa dos prepostos, presumindo-se a dos preponentes. O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam”. [06]


5 - CONCLUSÃO

    Respeitamos a dor e o infortúnio, o acesso ao Poder Judiciário expresso na Constituição Federal, mas ao mesmo tempo, entendemos, com imparcialidade, que o pleito para reparação civil, acerca da responsabilidade profissional, surge evidentemente, via de regra, da irresignação e do inconformismo, passando a ser instrumentalizado pela expectativa de direito. A lei nem sempre é remédio para as vicissitudes da vida, quer seja para o "ofendido", quer seja para o "ofensor". Entretanto sua aplicação é necessária, advinda como é, de uma regular tramitação do Processo de Conhecimento, em que se discute o direito de cada um.

Notas

01 - KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5 ed. São Paulo: RT, 2003. p. 46,47,48,49,50,51,52 e 53

02 - GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 360.

03 - 9070283-80.2009.8.26.0000 Apelação Com Revisão; Relator(a): Jesus Lofrano; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 17/11/2009; Data de registro: 24/11/2009; Outros números: 6698184700, 994.09.320885-0

04 - KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 7 ed. São Paulo: RT, 2010. p. 94-98.

05 - STJ-2ª Seção, REsp 908.359, Min. João Otávio, j. 27.8.09, quatro votos a três, DJ 17.12.08

06 - STJ-4ª T., REsp 258.389, Min. Fernando Gonçalves, j. 16.6.05, DJU 22.8.05

Referências

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  

Código civil comparado / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. - São Paulo ; Saraiva, 2002.


http://www.dji.com.br/leis_ordinarias/1990-008078-cdc/codigo_de_defesa_do_consumidor.htm