sábado, 3 de maio de 2014

“LOUCOS INFRATORES”: O DESCASO DO ESTADO COM UMA POPULAÇÃO ESQUECIDA NOS MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS


11.     INTRODUÇÃO

De acordo com o nosso ordenamento jurídico, são considerados inimputáveis os agentes que possuem doenças mentais ou desenvolvimento mental incompleto (Art. 26. CP), sendo assim, os chamados "loucos infratores" são encaminhados através de medidas de segurança aos manicômios judiciários, atualmente conhecidos como hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. O que ocorre é que na maioria das vezes esses indivíduos não recebem o tratamento necessário e permanecem presos até o final de suas vidas, violando os direitos fundamentais de qualquer ser humano, principalmente os que necessitam de um tratamento específico.

22.     A INCAPACIDADE DO DEFICIENTE MENTAL

A personalidade civil é formada a partir do nascimento com vida, juntamente com a capacidade de gozar de seus direitos e deveres. Entretanto, alguns indivíduos são considerados absolutamente incapazes de responder pelos atos da vida civil por si só, "II - os que por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade" (Art. 3º, incisos II e III, C.C).
Portanto, os absolutamente incapazes só terão a capacidade de contrair direitos, sem aptidão para exercê-los, podendo ser representados através da interdição, um processo judicial onde o portador de enfermidades mentais é analisado por um perito médico, declarado civilmente incapaz e analisado pelo juiz. Após a interdição, é necessário declarar um representante do agente, podendo ser um familiar, e na ausência dos mesmos, alguém indicado pelo juiz.

33.     MEDIDAS DE SEGURANÇA

3.1.         CONCEITO

Trata-se de uma espécie de sanção penal, aplicando do devido tratamento aos indivíduos inimputáveis que vem a infringir as normas penais. "É o meio empregado à defesa social e o tratamento do indivíduo que comete crime e é considerado inimputável" (Curso de Direito Penal, p. 252).
Em regra, aplica-se a medida de segurança detentiva, que poderá ser substituída pelo tratamento ambulatorial, onde são oferecidos os cuidados médicos ao indivíduo.

3.2.         ESPÉCIES DE MEDIDAS DE SEGURANÇA

O Código Penal dispõe duas espécies de medidas de segurança, sendo elas: "Internação em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II - sujeição a tratamento ambulatorial" (Art. 96, incisos I e II, CP).
Em relação ao prazo, a lei diz que será o mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, e o máximo será por tempo indeterminado, enquanto não for feita a  averiguação por meio de perícia médica até cessação de periculosidade.



44.     ASPECTOS GERAIS

4.1.         LEVANTAMENTO HISTÓRICO DOS HOSPITAIS DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIATRICO NO BRASIL

Os hospitais intrínsecos para receber os "loucos infratores" surgiram no Brasil ao longo do século XX, os HCTPs (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico) inicialmente chamados de manicômios judiciários, criados na década de 1920, tinha como objetivo retirar os indivíduos das ruas e da Santa Casa de Misericórdia, surgindo assim o primeiro hospital psiquiátrico no Brasil - o Hospício de Pedro II, em 1921 e a partir daí, os HCTPs incumbiram-se pelo cumprimento das medidas de segurança.
Atualmente, existem 26 hospitais de custódia funcionando no país, em 2011 uma pesquisa informou que os estados de Maranhão, Acre, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Amapá e Roraima não possuíam HCTP. No Sudeste se encontram 38% dos estabelecimentos, seguido por Nordeste, com 31%. O Sul e o Norte possuem 12%, já O Centro-Oeste apenas 8%.

4.2.         REFORMA PSIQUIÁTRICA

Os hospitais de custódia resistiram à Reforma Psiquiátrica, que surgiu após a promulgação da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, qual dispõe em seus artigos um novo modelo de saúde mental, frisando os direitos e as proteções dos indivíduos portadores de transtornos mentais.
Após a lei, o Brasil se tornou integrante de um grupo de países com uma legislação em plena harmonia com as OPAS (Organização Mundial da Saúde e seu Escritório Regional para as Américas), estabelecendo diversos direitos e um novo rumo para a assistência psiquiátrica, regulamentando as internações involuntárias que foram colocadas sob o controle do Ministério Público.

55.     A TRISTE REALIDADE DENTRO DOS MANICÔMIOS E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A exclusão e o preconceito com os indivíduos portadores de deficiências mentais existem há muitos anos, hodiernamente, isso não tem mudado muito. Os mesmos continuam invisíveis perante o Estado, a sociedade e até mesmo por seus familiares, pois entrar em um manicômio pode ser considerado um caminho sem volta.
De acordo com o Art. 150, § 1º do Código de Processo Penal, o prazo de espera do laudo psiquiátrico é de 45 dias, mas, em média, o tempo que se espera pelo mesmo são dez meses e 41% dos exames de cessação de periculosidade também se encontram atrasados. A invisibilidade desses sujeitos pode ser reconhecida facilmente, em pouco mais de nove décadas de história dos manicômios judiciários no Brasil, a contagem dos internados não havia sido efetuada.
Mas o descaso não acaba por aí: em uma visita realizada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) a Penitenciária Feminina, onde possuem presas em regime de cumprimento de pena fechado e semiaberto, foi revelado que as internas que possuíam transtornos mentais conviviam juntamente com as outras, e sem diferença nenhuma em seu tratamento, na espera do resultado do laudo médico.
Em cárcere privado algo que é muito marcante é a perda de identidade. O esquecimento e a falta de perspectiva faz com que os presos se sintam mortos, já que a sociedade não tem lugar para os mesmos. Desprovidos de suas vestes, de seus direitos de ir e vir, maltratados, controlados compulsoriamente e entregues a altíssimas doses de remédios, os encarcerados perdem pouco a pouco sua individualidade.
A situação em que se encontram os HCTPs é caótica, o descaso com os pacientes é muito grande e mesmo após a reforma psiquiátrica, o tratamento continua desumano, sem recursos, esquecido pelas autoridades e mostrando a incapacidade do sistema em garantir ao menos as condições legais em relação a direito e proteção.

5.1.          A INJUSTIÇA CONTIDA NA OBRIGATORIEDADE DA INTERNAÇÃO

O agente inimputável que comete atos antijurídicos é obrigado por lei a ser internado e sancionado com reclusão, o que é visivelmente injusto. Um agente que possui uma família que tenha condições suficientes de cuidar e dar o suporte necessário para seu tratamento, não tem necessidade de ser internado, caberia então a ele à aplicação de algo mais adequado como o tratamento ambulatorial.
A questão que deve ser analisada é a deficiência do agente e não apenas a gravidade de suas ações, uma vez que possuem uma anomalia psíquica que precisa ser tratada, o que não ocorre nos hospitais de custódia e o mesmo recebe a pena igual de um indivíduo absolutamente capaz.

5.2.          PRISÃO PERPÉTUA

Segundo o Dicionário, perpétuo é aquilo que não cessa; que dura para sempre, e é baseado nisso que muito dos chamados "loucos infratores" vivem. Mas ao contrário do que se pode parecer, e o limite máximo da pena no Brasil é de 30 anos e a prisão perpétua é expressamente proibida pela Constituição Federal em seu Art. 5º, inciso XLVII, alínea B.
De acordo com o Censo inédito realizado em 2011, entre homens e mulheres internados somam um total de 3.989 indivíduos, dentre estes, 741 já deveriam estar em liberdade, porém, continuam cumprindo a pena a muito mais tempo do que o previsto e 0,5% estão encarcerados há mais de 30 anos.
Ainda sobre esse aspecto, Eugenio Zaffaroni diz que "não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça a possibilidade de uma privação de liberdade perpétua, como coerção penal. não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça uma privação de liberdade perpétua Se a lei não estabelece o limite máximo, é o intérprete quem tem a obrigação de fazê-lo" (ZAFFARONI, 1998, p. 858).

66.     FILME-DOCUMENTÁRIO "A CASA DOS MORTOS"

A Casa dos Mortos é um documentário curta-metragem realizado com a direção e roteiro da antropóloga, documentarista, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) Debora Diniz, que mostra exatamente o dia-a-dia dos internados nos hospitais de custódia.
Possuindo apenas 24 minutos, o filme-documentário é dividido em três cenas que abordam vários temas, como por exemplo, o comportamento agressivo, as condições que levam a cometer o suicídio, o vicioso ciclo de remédios, a ausência de tratamento adequado e as penas excessivas.
Juntamente com o filme, é narrado um poema escrito durante as filmagens por Bubu, um poeta com 12 internações em manicômios judiciários, que possui um laudo comprovando sua sanidade mental e mostra que o mesmo não foi o suficiente para sua liberdade. Em um trecho do poema, Bubu mostra a realidade em que vive, e que os manicômios fazem jus ao nome dado por ele, "a casa dos mortos":
E, ainda sobre as 3 cenas:
são 3 cenas de um mesmo filme-documentário:
Cena 1, das mortes sem batidas de sino;
Cena 2, das overdoses usuais e ditas legais;
Cena 3, das vidas sem câmbios lá fora
– que se reescrevam, então,
Os Infernos de Dante Alighieri;
mas, aqui é a realidade manicomial!

[...]

Isto é um veredicto!
– tomara que fosse um ultimatum
à casa dos mortos!





77.     CONCLUSÃO


É fácil perceber que a questão dos infratores portadores de anomalia psíquica vem acompanhada de uma justiça criminal falha, do descaso do Estado e as autoridades, exclusão e preconceito da sociedade, e o mais triste de todos que é o abandono.
Um Estado democrático de direito que dispõe em sua Constituição a prevalência dos direitos humanos jamais poderia ser omisso a essa questão. O que se pode ver é que ao se tratar de um "louco infrator", a justiça reconhece apenas a delinquência, e se esquece de que a medida de segurança não é apenas sancionar e sim aplicar o tratamento necessário.
O ciclo de internações e remédios de alta dosagem é vicioso, os casos de suicídios dentro dos manicômios são muitos, mostrando que muitos preferem a morte ao continuarem presos nesses locais sem estrutura. O documentário citado acima mostra com clareza que esses indivíduos cometem atos antijurídicos por não possuírem discernimento mental, que necessitam de cuidados especiais com eficácia, e que privá-los de seus direitos, de sua liberdade nem sempre são as melhores soluções.
Segundo Luigi Ferrajoli:
 Acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas. [...] um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, se não que contradiz sua razão de ser, colocando-se ao mesmo nível dos mesmos delinquentes. (FERRAJOLI, 2002, p.318).

A situação em que se encontram os manicômios judiciários pode ser considerada inconstitucional, pois é totalmente contrária a vários princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico e mostram que precisam da atenção e do suporte do Estado. Uma vez que o tratamento não é realizado, a cessação de periculosidade nunca acontecerá, entretanto, mesmo aqueles que já possuem o laudo provando sua capacidade, continuam condenados a passar o resto de suas vidas privados de sua liberdade.
É necessário então que se entenda que, quando se tem o poder não é difícil retirar do convívio social os indivíduos indesejados pela sociedade, pois segundo Foucault, o sistema deixa viver quem é importante e morrer quem não interessa, e é exatamente essa a atual realidade dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no Brasil.


BIBLIOGRAFIA


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FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Disponível em: <http://www.uel.br/projetos/foucaultianos/pages/arquivos/Obras/HISTORIA%20DA%20LOUCURA.pdf>. Acessado em 22 abr. 2014.